Um semeador sai a semear
Ciro – Dr.
Gil Alves dos Santos,
Tão curioso
como seu nome era o autor das notas sublinhadas com o nome poderoso daquele que
um dia ainda seria festejado em letras grandes pelo Gore Vidal.
As edições da Folha da Mãe Ana,
intimorato jornal de página única editado no jornal O Dia do coronel Octavio
Miranda, pelo bancário do Banco do Brasil, Deusdeth Nunes dos Santos, o Garrincha,
referência mais lendária que genealógica ao “gênio das pernas tortas” do
futebol brasileiro, tinham colaboradores diversos, exclusivos de bons textos.
E de curiosa relação trabalhista: ninguém era
pago. Escrevia-se pelo prazer de ler depois os próprios textos impressos em
letra de forma. Estamos nos anos 70.
No Brasil queimam a ditadura militar de um
lado, os escondidos de outro. E, de permeio, jornalistas que não aderiam ao
golpe. Nem aos revolucionários da época. Era o que se chama de povo “em cima do
muro”.
Ficávamos batucando nas máquinas do coronel:
fazendo notinhas de agrado, pequenas noticias que não prejudicavam ninguém nem
a oposição nem o governo.
Este, cioso, praticava a doação de óbulos
generosos no formato de cotas aos jornais que, porquanto pagos, mais
silenciosos. Entre os escrevinhadores da Folha tinha o Ciro Rei da Pérsia.
Tão curioso como seu nome era o autor das
notas sublinhadas com o nome poderoso daquele que um dia ainda seria festejado
em letras grandes pelo Gore Vidal.
Ciro era, portanto, um homem nascido para
glorias que o acanhado espaço reservado a um escriturário do Banco do Brasil não
podia conter.
Digo a bem da verdade que Ciro, rei da Pérsia,
escrevia com a pontualidade britânica admitida aos sinos do relógio inglês.
Era sexta-feira e lá vinha o Ciro com suas
notas cheias de picardia sobre temas do cotidiano. Bancários do Banco do Brasil
tinham a má fama de escrever bem. Vejam ai o Jaguar, criador do Pasquim, o OG
Rego que escreveu romances únicos. Que arrombaram as fronteiras culturais do
Piauí e atingiram os gabinetes de leitura de Brasil, Portugal e lonjuras
outras.
Digo má fama porque os que viviam da produção
de notas, sueltos, editoriais, colunas e potins dos jornais da época torciam o
nariz para os apadrinhados da sorte: ora porque já trabalhavam no Banco do
Brasil que representava o mesmo que ser diretor da madrinha mãe Petrobras e
suas generosas fortunas, ora porque nem precisavam dos gelds da ranzinza folha
e seu prezado diretor que também era bancário.
Ciro escrevia e ia fazendo nome. E todos
pensavam que ele acabaria de corcunda ardida de tanto debruçar-se a favor dos
interesses do grande estabelecimento estatal.
Lendo as notas de Ciro percebi que ele seria
muito mais que simples registro na galeria dos grandes funcionários da
portentosa casa bancaria.
Ele queria mexer mais fundo nas feridas da
sociedade brasileira civil cristã ocidental capitalista. E injusta.
Anos depois dos tempos bons do jornal do
coronel perdi contato com o pessoal da Mãe Ana. Todos tomaram rumos diferentes,
mas sobrevivendo no mesmo território.
Um dia o encontro na rua, salão principal das
relações sociais dos amigos de ontem e de hoje. Todos têm um amigo encontrado
na rua. Se não o tiver é porque não o tem de jeito nenhum.
Ao seu estilo Ciro não regurgitou cantadilhas
provincianas dos bem de vida: aqueles que se dizem realizados posto que os
filhos estejam formados. Alguns com netos. Outros com amantes escondidinhas na
folha secreta dos currículos pessoais.
Apenas indicou seu escritório de advocacia situado
ao fundo de silencioso corredor de prédio comercial.
Lá está com ditos e profundos dizeres práticos
sobre a notável arte de defender os injustiçados frente àquela que não vê e
exibe balança de mercador.
Na outra mão espada de gladiador, desse povo que
acerta golpes nos pescoços alheios.
Uma vez acordei assustado com descoberta
agitada de que o Brasil estava cheio de pessoas gerais especializadas na
mercantilização do talvez.
Mercadores de talvez são os que prometem. Logo
não pagam, Posto que se pagassem não alegariam a dádiva suspeita da promessa.
Ciro é o advogado Gil Alves dos Santos.
Ninguém o conhece como “Ciro”. Tal o ineditismo de amizade de máquina de
escrever.
E a sua assessoria olha para mim como se fosse
fantasma do meio-dia. Dizem – os mais temíveis. E terríveis – acho.
Desfeitos os mal entendidos vejo-me frente a
frente com o meu amigo Ciro, rei da Pérsia. Está mais arredondado. Coisas da
idade que insiste em ampliar nosso contorno e aplicar cinza plúmbea sobre nossa
cabeça em que ainda resistem touceiras capilares saudosas e experientes.
Gil Alves dos Santos é leitor perspicaz.
Ouvinte assíduo também o é. Dos que enveredam pela poesia diluída em frases
sonoras porque a letra da musica tem que corresponder à práxis da métrica e ao
ritmo correspondente. Coisa que exige respeito e dedicação. Hoje, o que temos
são oportunistas que adicionam malicia a versos quaisquer e saem por ai lepo
lepo fazendo sucesso que a economia farrista do Brasil atual avaliza. E compra.
Dr. Gil, a bordo do seu canudo de advogado,
instalou seu escritório com lema latino “Ecce exiit seminat, seminare”. O que
se traduz por “Eis que o semeador sai a semear”.
É ele o semeador. Tem ao seu favor a
curiosidade que o levou a reproduzir em texto exemplar as naturais singelezas
de quem mora no interior do Nordeste sob as proteções das palmeiras onde o
próprio Gonçalves Dias disse que é “onde canta o sabiá/as aves que aqui
gorjeiam/não gorjeiam como lá..”
Sua descoberta se dá com a tragédia do “O
ébrio” canção que marcou a juventude dos anos 50 pela sua estrutura singular
tratando-se da decadência de cantor erudito que termina seus dias entregue aos
rigores da dependência do álcool Ao tempo em que ainda não havia nenhum estudo
capaz de deliberar sobre os perigos da bebida e os males que provoca nos que a
adotam.
Por vias paralelas apresenta o contexto do
rádio e sua representação na família com seu noticiário, seus musicais e o
status que conferia aos que detinham a posse de um legítimo aparelho ABC – A
voz de ouro e o inolvidável canarinho que ornamentava a mesinha da sala de visitas.
O agora dr. Gil recupera a agilidade do Ciro,
rei da Pérsia e seu texto coloquial. É claro que um cidadão que se forma sob a
égide da curiosidade e o compromisso de amar e a honrar a família numerosa não
pode ser uma pessoa comum.
Ao seu escritório acorrem os que precisam do
socorro da justiça porque ele defende que o “Direito não se pede, direito se
requer. Transcrevo o texto em que o autor mergulha na densa literatura de “O
ébrio”, que tanto o encantou:
O ébrio e o rádio
Por Gil
Alves dos Santos
1 – Nos anos de 1955 a 1958 o meu pai e o seu
cambão de filhos, este escriba, inclusive, mais uma tropa de 15 ou 20 jegues,
estávamos zanzando entre os povoados Zumbi e Tapera, propriedades do Coronel
Luiz Firmino, à direita e à esquerda da estrada que nos leva até Matões,
Maranhão. Papai fora convidado para administrar as fazendas daquele, à época,
magnata ilustre, já falecido.
2 – Pobres, sim, mas não miseráveis, tanto que
convivíamos com algumas modernidades, dentre elas, um rádio ABC, a Voz de Ouro,
o canarinho, que estou restaurando, funcionava com pilhas de lanternas, das
grandes (as pilhas). A maravilha de então, salvo engano, era fabricada em
Recife, com cinco faixas de ondas que, com uma antena de cobre estendida sobre
a casa, pegava realmente tudo. Minha avó Angélica, realmente um anjo feito
mulher, por isso uma neta homônima, cujo oficio, por título e competência, é
cuidar dos bichos, dizia não entender como a voz e a criatura desciam por um
fio tão fino e ninguém os via. Os ouvíamos. Mas não faça galhofa da vovó, pois
D. Pedro II, imperador deste Brasil e portador de vários títulos acadêmicos ao
testar um aparelho telefônico, na presença de Graham Bell, o inventor da
modernidade, disse, espantado: - tem um homenzinho aí dentro.
3 – Numa dessas mexidas matinais ouvi, pela
primeira vez, na Rádio Aparecida, que funciona desde 1937, na frequência à
época medida em quilociclos, e nunca me esqueci, o bolero Neutro Juramento, de
Benito de Jesús, na interpretação de certo Júlio Jaramillo, já falecido. Esse bolero,
que o VTS guarda num baú de relíquias, chamado de Caixa Preta, aqui entre nós
tornou-se conhecido com a gravação do Trio Cristal, em sua segunda fase, tendo
o jovem Altemar Dutra como um de seus integrantes, aí pelos anos de 1965 a
1967, sendo paraguaios os demais. Nessa década distante eu já estava
alfabetizado.
4 – No entanto, o título destas linhas mal
traçadas é “O ÉBRIO (A CANÇÃO) E O RÁDIO”, não o ébrio que tomba sob os efeitos
do álcool, mas a canção de Antônio Vicente Felipe Celestino, de 07.08.1936,
versão pouco conhecida, sendo famosa aquela com a declamação introdutória
também dele, em gravação de março de 1957, tendo como matriz a trilha sonora do
filme homônimo, rodado em 1946. Foi esta e não aquela que – anos mais tarde –
entraria pelos meus ouvidos por intermédio do bom e inesquecível canarinho,
quando morávamos no povoado Tapera, cujas noites bem iluminadas por um também
inesquecível Petromax, uma usina de iluminação a querosene tipo candeeiro, e
modernidade para poucos, tinha o silêncio quebrado pelo cantar da coruja –
bacurau. Foi nesse ambiente que lia em voz alta “os romances” do Pavão
Misterioso; As Aventuras de João Grilo; Lampião Chegando ao Inferno, e outras
maravilhas do imaginário popular conhecidas como literatura de cordel.
5 – Numa noite de um mês de 1958 ou 1959 que
não me recordo, talvez dezembro, pela ocorrência das férias escolares, em
sintonia com a Rádio Sociedade da Bahia, que existe desde o ano de 1924, um
cantor, com uma voz de quebrar até copos de vidro, assim iniciava a sua canção:
“Nasci artista, um cantor. Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto. O
meu nome pouco a pouco foi crescendo, até chegar aos píncaros da glória. Durante
a minha trajetória artística tive vários amores. Todas elas juraram-me amor
eterno, mas acabavam fugindo com outros, deixando-me a saudade e a dor. Uma
noite, quando eu cantava a TOSCA, uma jovem da primeira fila atirou-me uma
flor. Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legitima esposa. Um dia, quando
eu cantava A FORÇA DO DESTINO, ela fugiu com outro deixando-me uma carta, e na
carta um adeus.”
6 – Um zumbiano que se divertia ladeira abaixo
com capembas de palmeiras de babaçu, como se fosse um par de esquis, e varas de
talo-de-coco, como se bastões, não tinha como não tem a menor noção do que era
“...cantar a TOSCA ou A FORÇA DO DESTINO...” como chamariz para impressionar a
mulher amada ou candidata a. Anos depois, na formação acadêmica, e como me
ensinou o amigo Antônio de Pádua Soares, um poço de sabedoria, no Banco do
Brasil, fiquei sabendo que as coisas cantadas por Vicente Celestino eram
óperas: - TOSCA, de Giacomo Puccini (em DVD da Decca) e a FORÇA DO DESTINO (em
DVD da LW-Editora), de Giuseppe Verdi. Ambas, que hoje as conheço, são
soberbas!
7 – O ÉBRIO, música de 1957, não associava o
sexo ao pecado, predominante nas canções da época – Argumento, de Adelino
Moreira (...meu pecado quase crime de um beijo sem permissão...) e Última
Estrofe, de Cândido das Neves (...e o beijo do pecado...). A temática é a
infidelidade conjugal, elevada à condição de tragédia social do alcoolismo,
daí, com certeza, a referência à ópera A Força do Destino, que também tem a
tragédia, a honra, a vingança, como pano de fundo. Vicente Celestino deve
lembrar, era completamente abstêmio, nunca tomou um gole de bebida alcóolica, o
que não impediu, na confusão entre artista e personagem, que Gilda de Abreu,
sua mulher, fosse duramente espinafrada, por levar um homem bom ao fracasso,
traindo-o e depois, à lama, tornando-o um farrapo humano (Há um DVD americano
com este título, o mesmo tema, a mesma época, ofuscado, no entanto, pelo Ébrio
de Celestino), pelo vício do alcoolismo, fato agravado quando do lançamento do
filme do mesmo nome, em 1946. Neste filme, em DVD da Versátil, que tenho em
mãos, completamente restaurado, um fenômeno de público, Vicente Celestino era o
Doutor Gilberto Silva, médico famoso que, traído pela mulher, abandona tudo e
se entrega à bebida, chegando à condição de mendigo, há uma frase famosa dita
por Gilberto após encontrar-se com Marieta: - “Eu disse que perdoava. Não disse
que com ela me reconciliava.”
8 – Ouvidos educados ao somo de O Ébrio,
Patativa, Porta Aberta, Caminhemos (Herivelto Martins), Carinhoso (Pixinguinha
e João de Barros), Serra da Boa Esperança (Lamartine Babo), vão estourar com
Ai... se eu te pego (Michel Teló), Eguinha Pocotó (Serginho), Vai Lacraia
(idem).
Em outro texto ele analisa o surgimento da
nova música popular brasileira contemplando o que se faz hoje neste campo e o
cenário em que se escutam tais músicas.
Pelo seu texto moderno conduz o leitor a um
laboratório de lembranças que existe em Teresina com assinatura de um lendário
barista com formação autóctene e exclusiva competência para produzir peixe no
formato ribeirinho.
A um
tempo para contextualizar o lado romântico das história do grande Ciro e do
celebrado Dr. Gil lembro que o laboratório está colocado no âmbito da Paissandu
que já foi- há anos – a nossa Rua Augusta aonde se locupletavam os locadores de
quartos para as raparigas, as jovens e não tanto mulheres que se entregavam ao
mais antigo ofício do mundo
Devo dizer consoante que em instantes o autor
nos leva a velha India, à notável Alemanha e sua produção lítero/musical
fortíssima na formação de novos conceitos da cultura universal e ao fim
mergulha como um escorregador de capembas numa análise de Adelino Moreira em
música celebrada por Nelson Gonçalves.
Ciro, rei da Pérsia moraria tranquilamente em
Nova Iorke para escrever na sua mais portentosa revista a própria New Yorker,
se não fosse seu compromisso com o futuro o de semear O direito.
Transcrevo sem aspas nem sublinhas seu segundo
texto. O primeiro fala do continente ou o emissor da mensagem radiofônica;
neste ele esboça uma revisão do conteúdo de mensagens que os menos atentos
deixam passar ao largo como um lepo lepo qualquer.
Baú musical
Escarafunchado
nas mesas do VTS
Gil Alves dos Santos
De passagem pela Índia, rica e miserável, fui até Agra,
cidade onde se localiza o conjunto arquitetônico, na verdade palácio funerário,
feito em nome do e para o amor, conhecido como a oitava maravilha do mundo.
Essa maravilha do século XVII, toda em mármore branco celestial, pela pureza
que encerra, é uma homenagem do sultão SHANJAHAN para sua falecida e amada
mulher MUMTAZ-I-MAHAL, daí o nome como é conhecido: TAJ MAHAL.
Só o binômio amor-paixão pode justificar ou explicar obra tão
bela e fantástica. Única no mundo, materialmente falando!
Da Ásia central para o Ocidente, nas asas dos meus sonhos
impossíveis, dei de cara, na Alemanha, com outro monumento: - um canto, também
de enlevo à paixão, conhecido e sintetizado no romance WERTHER, de Wolfgang
Goethe, baseado em experiência vivida e sofrida pelo próprio. Ele se apaixona por
Carlota, esposa de Kestner, seu amigo nº 1. Quem desejar conhecer a obra verá
até que ponto pode chegar a paixão de um homem por uma mulher, que a Danusa
Leão em “EM QUASE TUDO” define muito bem. Lindíssimo, o romance, mas impróprio
para o deprimido, doentio, esse que tem raiz em “pathos”, como significado de
doença, morbidez.
Mas, considerando o tema enfocado, “cadê” a música do Baú ou
o Baú de música?
O fascínio do amor-paixão produziu, aqui, graças à
genialidade de ADELINO MOREIRA, morto em 11.05.2002, esse Rodin da música
brasileira ou para Tárik de Sousa “...o caixeiro viajante das emoções...”,
outro monumento, o mais belo de todos, ao menos para mim, com certeza, pela
universalidade dos tipos de que se vale, materializado na composição conhecida como
ESCULTURA, imortalizada por Nelson Gonçalves, gravada em dezembro de 1957,
marcante já na abertura quando a orquestra em tutti com predominância dos
naipes das cordas e da percussão, sustenta Lourdinha Bittercourt – e não Ângela
Maria, como muitos pensam – anunciando a entrada da intérprete da música, cuja
letra é a seguinte:
Cansado de tanto amar
Eu quis um dia criar
Na minha imaginação
Uma mulher diferente
De olhar e voz envolvente
Que atingisse a perfeição
Comecei a esculturar
Do meu sonho singular
Essa mulher fantasia
Dei-lhe a voz de DULCINÉIA,
A malícia de FRINÉIA
E a pureza de MARIA.
Em GIOCONDA fui buscar
O sorriso e o olhar;
Em DUBARRY o glamour.
E para maior beleza
Dei-lhe o porte de nobreza
De MADAME POMPADOUR.
E assim de retalho em retalho
Terminei o meu trabalho
No meu sonho de escultor.
E quando cheguei ao fim,
Tinha diante de mim,
Você, só você, meu amor.
O apaixonado quer uma mulher assim: - que tenha voz de
Dulcinéia, a Del Toboso, de Dom Quixote, porque ela é perfeição: - que tenha a malícia
de Frinéia, porque ela motiva e vence até o mais fechado dos julgadores, pois
que absolvida da acusação quando e exibe nua perante a Corte que a estava
julgando;
- que tenha a pureza de Maria, porque ela representa a
santidade;
- que tenha o sorriso de Gioconda, porque é única,
misteriosa, inigualável;
- que tenha o glamour de Dubarry, porque é amada e amante;
- que tenha, finalmente, o porte de Madame Pompadour, porque
até para conquistar o coração ela é nobre e única.
Com tantos atributos, o cinzel baixado, ou melhor, a caneta,
eis diante do escultor apaixonado uma mocinha, de cabelos longos, uma perfeição
de mulher, Vênus em poema, nascida de um sonho singular. Uma criatura divina,
cândida, escultural, de fazer inveja a qualquer prego.
Sim, pois somente um brasileiro, misturando o sagrado e o
profano, criaria um monumento ao amor, único no mundo, em forma de cantiga, de
rara beleza, custodiada pelos querubins celestiais. Mas o fato é que, também de
rara beleza e sabor, é o peixe do VTS, na simplicidade de um mestre sem
frescuras, agora com a vista tinindo de nova, que no prato se espalha e se
desfaz como pétalas. De qualquer forma,
estou perdoado, pois a sabedoria deste escriba é de almanaque, mais
precisamente Capivarol, por isso vou ficando por aqui. E se o Pedro Costa
consentir, ainda volto.
GIL ALVES DOS SANTOS
Destaco outra crônica do doutor Gil
Alves dos Santos que mais ilustra sua facilidade para elaborar textos em que agrega
a sentimentos pessoais suas reflexões sobre temas do cotidiano carregados de
significados. Ressaltando visão social abrangente e acolhedora do drama humano.
Gil Alves dos Santos é bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Piaui. Aposentado Banco do Brasil foi também assessor
jurídico do Tribunal Regional do Trabalho no Piaui – TRT-Pi.
Agora vamos acompanhar o autor a uma viagem ao
passado em que, sob formato de missiva expõe mais uma aventura de observador da
cena diária dos dias de hoje e do passado.
TÚNEL DO
TEMPO:- CARTA DE DESPEDIDA A UMA
EX-AMANTE.
Por GIL ALVES DOS SANTOS
1
– O ano foi o distante 1968, junho era o mês quando a conheci na SERRANO &
CIA, uma tem-de-tudo da época, não restando hoje nem mesmo um tijolo como lembrança daquela loja. Numa
olhada, longe de mim um Don Juan, percebi que a conquista era fácil, ainda que
a me valer de uma carta de alforria a ser paga ao dono e senhor da loja, pois
para ele a minha pretendida não passava de um objeto. De fato, em questão de
minutos, sem, no entanto, ser uma leviana, cá estava ela a me fazer companhia,
diga-se duradoura, ao longo de quarenta
e uns anos.
2
– Não sei se ela foi a Amélia de minha vida,
pois longe da subserviência da canção cuja letra é de Mario Lago, gravada
por Ataulfo Alves, autor da melodia, em
novembro de 1941, sucesso absoluto até hoje. Também nunca pensou em
riqueza, menos ainda em luxo. Foi ela, na verdade, uma companheira dedicada,
competente. Morena, meiga, uma sapoti, gostava e aceitava todos os meus
toques, mesmo não sendo piano, para
lembrar a Delegada Wilma, que me pareciam suaves. O prazer era total assim como
total foram as nossas cumplicidades. Quando eu era mais jovem, procurando
emprego, um patrão sádico, tarado, perverso, exigiu que eu fizesse nela, na presença dele, como num strip-tease, a
performance de novecentas bolinações em cinco minutos, com a cara e o pescoço
torcidos, sem olhar para as suas voluptuosas saliências - no
bom sentido, devo dizer.
3.
Sem meia luz, sem gato de porcelana, mas com uma vitrola que chorava e assim
continua, como na canção de Edgard Nonato e Cesar Lenzi, lindíssima aqui como Meia-Luz, na versão de
Floriano Faissal e voz inconfundível quanto insuperável de Nelson Gonçalves,
ficávamos até alta madrugada, nós dois, bem juntos, ela obedecendo meiga e
fielmente aquilo que eu lhe ia pedindo ou repassando. Dedicada, leal no
absoluto, era cônscia da sua condição de amante, me fez companhia nas muitas
viagens que fiz e até transitou nas mesas do VTS, apesar de abstêmia,
sem nada reclamar, sem nada pedir -
quando muito uma peça de chita para poupá-la da poeira deste chão árido e seco
ou do frio nas longas noites nos ônibus para o sul deste Estado.
4.
Nunca foi exibida, certo que portadora de uma beleza invejável, ímpar. Não
exigia aposentos de luxo; o tempo todo era colada em mim. Jamais me apresentou
uma nota de compra ou fatura de cartão de crédito - e
se assim fizesse com certeza ficaria mais cativo ainda, não como moeda de
troca, mas pela gratidão, também pela regra de que o amor sem conforto não
resiste a uma pequena tempestade. Hoje os tempos são outros! Fica-se
por uma noite e pronto.
5.
As sandálias mais do que franciscana eram sempre de cor preta. Ocasionalmente
misturava preto com vermelho, quem sabe por ser daltônica, não como indicação
de perigo ou um aviso para não avançar o sinal daqueles dias. Jóias, jamais, mesmo e porque não sabia ela fazer a
distinção entre uma pedra preciosa, uma gema ou bijuteria. Tudo era absolutamente igual, como os rolex’s, midos
ou outras grifes do Sabará, nas vitrines do Diga-meu-bem. Assim, palmilhamos toda uma existência, de
puro companheirismo, lealdade ímpar, respeito mútuo, de total e intraduzível
intimidade.
6
– Não me chamem de calhorda, ingrato, mas o fato é que a minha companheira e
amante, tornou-se uma velha, uma balzaquiana,
mesmo conservando as curvas indescritíveis, a pele sem uma única ruga,
sem botoque, uma dama com a mais alta dignidade. Mas ela, devo dizer, pois a
perfeição humana não existe, nunca se
interessou pelo modernismo. Jamais encarou, pelo menos, o
mundo da alta costura ou estilistas como Coco Channel, Paco Rabanne,
Christian Dior. Informática, - e nesta parte a velhice chegou rápida, inevitável
- jamais, pois para ela e nisso
tem razão o computador não passa de uma máquina burra:- sáite, web, Google, internet, processo
virtual, nem pensar!
7
– Por isso, aqui e agora, vou revelar o nome, a identidade de minha leal, doce
e dedicada amante, seguida de uma notícia estarrecedora:- Ela é uma OLIVETTI-LETERA-22, italiana, ainda
com as curvas perfeitas, impecáveis, pronta para atender às exigências do
dedicado companheiro. Uma máquina de
escrever mais do que perfeita.
Agora a bomba, o que não é novidade diante de recente decisão do Supremo
Tribunal Federal, autorizando a união de
pessoas do mesmo sexo: troquei a OLIVETTI, feminina, morena, adocicada até mais
onde não pode ser, por UM AMANTE, conceitualmente masculino, um Computador. Minha querida OLIVETTI, minha boa máquina de escrever,
adeus! Estou agradecido pelos 43 anos de feliz união, convivência,
cumplicidade. Mas livre não serás! Ficarás trancada no espaço de minha estante,
especialmente arrumada para recebe-te de modo absolutamente
confortável.
citações
“trabalhavam no Banco do Brasil que
representava o mesmo que ser diretor da madrinha mãe Petrobras e suas generosas
fortunas, porque nem precisavam dos gelds da ranzinza folha e seu prezado
diretor que também era bancário”.
“Gil
Alves dos Santos é leitor perspicaz. Ouvinte assíduo também o é. Dos que
enveredam pela poesia diluída em frases sonoras porque a letra da musica tem
que corresponder à práxis da métrica e ao ritmo correspondente. Coisa que exige
respeito e dedicação”
“Numa dessas mexidas matinais ouvi, pela primeira
vez, na Rádio Aparecida, que funciona desde 1937, na frequência à época medida
em quilociclos, e nunca me esqueci, o bolero Neutro Juramento, de Benito de
Jesús, na interpretação de certo Júlio Jaramillo, já falecido’
“Da Ásia central para o Ocidente,
nas asas dos meus sonhos impossíveis, dei de cara, na Alemanha, com outro
monumento: - um canto, também de enlevo à paixão, conhecido e sintetizado no
romance WERTHER, de Wolfgang Goethe, baseado em experiência vivida e sofrida
pelo próprio”
“O apaixonado quer uma mulher assim: - que tenha voz de
Dulcinéia, a Del Toboso, de Dom Quixote, porque ela é perfeição: - que tenha a
malícia de Frinéia, porque ela motiva e vence até o mais fechado dos
julgadores, pois que absolvida da acusação quando e exibe nua perante a Corte
que a estava julgando;”
“Por isso, aqui e agora, vou revelar o nome, a identidade de
minha leal, doce e dedicada amante, seguida de uma notícia estarrecedora:- Ela é uma OLIVETTI-LETERA-22, italiana, ainda
com as curvas perfeitas, impecáveis, pronta para atender às exigências do
dedicado companheiro. Uma máquina de
escrever mais do que perfeita”